Em segundo lugar, mil perdões pela demora. Por uma infelicidade do sistema de ensino superior de nosso país, todos os três entraram em provas nas mesmas semanas... Mas já temos um esboço de nossos próximos textos planejados. Eu em particular recebi perguntas sobre os motivos de eu estar dando foco nos mortos; quanto a isso, posso dizer que terão seus motivos explicados no futuro. Necromantes são legais, não é mesmo? ;D
Então, chega de enrolação e vamos direto ao texto. Mais uma vez, muito obrigado!
Harold Spencer, o homem que nunca chegou ao front
Parte II
–Chegamos, finalmente – polido em sua seriedade, Wesley se empertigava antes de dar ordens ao grupo. Por dentro, impossível descrever seu alívio – Asher, esta missão é sua. Eu e o ministro Faber temos de explicar melhor os nossos motivos para a Casa...
A moça oculta pelo capuz ia avisar algo, mas foi barrada a meio caminho pelo corpo do secretário sênior:
–Que tal irmos aos seus superiores? Meu novo soldado vai precisar de alta.
***
No interior mais profundo do asilo, numa ala onde poucos desejariam caminhar, havia um quarto tingido de azul, composto de duas camas e nada mais. Quaisquer suportes ou aparelhos que pudessem afirmá-lo como um ambiente hospitalar inexistiam, exceto uma bandeja móvel na qual se observava uma refeição ainda não tocada. O local, como o resto de todo aquele setor, era apenas luz e silêncio. Luz, dos janelões escancarados e corredores abertos para jardins de flores brancas, e o silêncio dos que nada tinham a dizer. Luz e silêncio, para os moribundos que aguardavam a morte sem a chance de lutar.
Uma das camas foi desocupada na última semana, esperando seu novo cadáver em potencial com a sede estampada nos lençóis; a outra continuava a guardar um homem delirante, deformado de tão magro, cabelos desgrenhados em um tom sujo e com um odor putrefato exalando dos poros. Quem o visse naquele estado, de olhos fechados e sem respiração aparente, o julgaria como morto... No entanto, bastou a sombra de alguém entrando no quarto para despertá-lo. Do outro lado, encarando a figura decrépita de Harold Spencer, Asher suspirava de alívio. As coisas que vira no caminho o fizeram temer pelo pior...
–Agradeça a Una pela sua sorte, soldado – o moreno dos desertos não percebia, mas sua voz se elevava até ultrapassar as paredes, como um rugido corajoso e autoritário. Era essa mesma voz que fazia os novos recrutas se borrarem em tempos antigos – Meu nome é Asher Uthman, Chefe da 1ª Divisão Translocante, e vim aqui pelos seus feitos em Carmillah. Você bem deve saber o que quero, se esteve a par de nosso papel ao longo dos tempos...
O outro, enfraquecido pelas próprias mazelas, perdeu um bom tempo analisando o porte daquele fardado a sua frente, percorrendo seu semblante sério e corpo que parecia esculpido na rocha com os olhos semicerrados. Em seguida, um sorriso irônico precedeu a resposta:
–Asher Uthman... De fato parece nome de gente importante, mas eu nunca ouvi falar do senhor, sargento.
–Chefe.
–Que seja – Harold tossiu, sem suportar o esforço de uma risada. Mas, diante da veia que começava a pulsar no pescoço do gigante, ele pigarreou – Enfim, não conheço o senhor, mas já ouvi falar dos translocantes... Você é um fantasma, não é? Como seus amiguinhos que me cercam desde que fui internado... São seus espiões?
–Eu não sou um fantasma, embora sejamos parecidos em alguns aspectos. Mas se você consegue enxergá-los, já é um bom sinal – alguma coisa despontou em seu rosto. Talvez fosse um sorriso – Este é um dom raro, mesmo entre nós...
–Talvez eu também seja um fantasma, senhor – o paciente, até agora mantendo uma postura lúcida, pela primeira vez deixou os olhos se perderem no nada, ignorando o homem a sua frente. Por toda a volta, os etéreos atravessavam as paredes de ponta a ponta, flutuando e girando em ângulos impossíveis. Suas roupas se confundiam com suas formas naturais, as quais exibiam ou não as cicatrizes anteriores ao falecimento. Inclusive, havia um em especial que exibia curvas femininas, coberto por um manto branco da cabeça aos pés... Era para este que o soldado Spencer olhava – Oh, olá enfermeira. Pode separar o pirão de peixe do meu almoço? Eu sou alérgico...
O ser arrancou o capuz da cabeça e escancarou a bocarra horrenda para o enfermo, balançando as janelas com o seu sussurro. Ele somente retrucou um “mal humorada” entre os dentes, enquanto Asher balançava a cabeça.
–Estes “amiguinhos” devoram uma parte sua a cada dia, se é que não percebeu. Se não me escutar eu deixarei que terminem o serviço, e te garanto que não é nem um pouco compensador – com um suspiro de conformidade, Harold fez um gesto enfastiado para que fosse em frente. “Mas a minha resposta para isso tudo não mudará”, insistiu em concluir.
–Veremos, soldado – Asher colocava os braços para trás antes de prosseguir. Força do hábito... – Como bem lhe disse, estou aqui pelos seus feitos em Carmillah. Apesar de não ter ido ao front, sua manobra para salvar a vida do general Ioréck evitou uma insurgência no local, o que possibilitou o progresso da Federação dos Seis pelas terras selvagens de Insecura. O senhor já estava a par destas consequências?
–Se eu já estava a par? – ele não deixou de engasgar mais uma risada seca ao repetir a pergunta, vagaroso e sibilante – A única coisa que vocês federados fizeram foi me sedar e enviar para este hospício no final do mundo. Nunca recebi uma medalha por ter salvo a vida daquele desgraçado estuprador de nativas!
Apesar do desacato, o moreno se manteve impassível, apenas analisando a raiva do outro. Então ele se aproximou vagarosamente, agachou-se ao seu lado e aproximou bem o rosto, ao ponto de sentir sua respiração debilitada. O que disse em seguida finalmente surtiu algum efeito no rapaz:
–Eu sei como funciona o sistema, filho. Se você sabe demais, ele te apaga; se tiver o que falar por conta própria, ele corta sua língua. Eu mesmo não vim para cá sozinho... Lá fora, o secretário sênior Wesley Styx e o ministro Faber, responsável pelo mandato que o trouxe para cá, me esperam com resultados de nossa conversa. Então acredite, não temos muito tempo para falar de homem para homem, sem esta maldita farda para impor barreiras as nossas opiniões – de olhos arregalados, sem esperar por aquilo, Harold por um segundo enxergou o chefe translocante de outra forma: um prisioneiro de sua própria sina, lutando pela liberdade ao mesmo tempo em que se sujeita a toda espécie de ordem sem pestanejar. Quanta ironia, até os militares das mais altas patentes guardavam uma alma dentro de seus códigos morais e hierárquicos...
–O que você quer comigo? – embora balançado a favor de Asher, ainda não confiava nele. Quem poderia lhe garantir que não soprava tais coisas em seu ouvido justamente para ganhá-lo?
–Minha missão é integrá-lo à 1ª Divisão Translocante... Você possui um perfil de excelência como fuzileiro: sempre se destacou nos exercícios de tiro e disciplina, e ainda com um feito heróico ao seu favor, apesar dele ter custado sua saúde. A soldados perfeitos como eu e você é dada uma segunda chance de-
–De servir a pátria? Poupe-me desse papo, senhor.
–Eu ia falar de uma segunda chance para se recuperar – sobrepondo sua voz à do enfermo frustrado, Asher continuou o raciocínio – a servidão é um preço pequeno a se pagar, se pensar naquilo que lhe é ofertado... Diga-me, você tem família para voltar?
–Eu tinha, senhor... Uma vadia chamada Mary Lacer, pela qual eu dava meu sangue para subir de vida na Marinha – Spencer fechou os olhos nesse momento. Passados alguns minutos, estavam marejados – Consegue adivinhar o que aconteceu quando ela me viu debilitado assim? Nós havíamos noivado antes desta viagem para o inferno, o senhor sabe o que é isso?? Estou abandonado em um mausoléu onde nem os mortos falam comigo, e depois de anos você acha que pode vir aqui e dar uma de salvador??? Eu preferia ter morrido com o veneno que aquele selvagem atirou em mim!
–Sim... Mas pelo que consta no dossiê que recebi a seu respeito, foi você quem pediu para viver. Disse que queria ver a senhorita Lacer novamente.
–Um dossiê?? Vocês fizeram uma porra de um dossiê da minha vida???
Diante de um homem a beira do descontrole, o fardado aproximou ainda mais o rosto, com uma expressão tão severa que até mesmo a brisa parou de soprar:
–Sua vida não existe mais, Harold Spencer – a voz, no entanto, era pausada, praticamente um sussurro rouco e baixo, o que agravava a seriedade de sua posição – Desde o momento em que aquela toxina neural lhe derrubou na ilha de Carmillah, a única coisa capaz de afirmar o senhor como gente estava naquele dossiê... E eu o queimei por inteiro um dia antes de vir para cá. Quando o senhor morrer e for devorado por essa multidão aqui em volta, ninguém se lembrará de nada sobre sua passagem na terra, e se o senhor entrar para a minha Divisão, acabará sendo forçado a abandonar qualquer identidade pessoal, está me entendendo, soldado? Está entendendo o quão grave é sua situação?
E o enfermo, soluçante, deixou que ele continuasse. Nesse meio tempo outro fantasma atirou os braços em sua direção, recebendo em troca desdém e palavras de baixo calão; os etéreos começavam a representar um perigo real a sua essência, capazes de quase tocá-lo, e Harold não se importava nem um pouco. Toda sua vontade de viver se esvaíra, sendo aquela conversa o golpe final. Que fosse devorado e esquecido, de que importaria afinal de contas? Ficou claro que, no caso de aceitar a proposta, não seria muito diferente das almas assombrando o asilo, então teria de ser como o homem a sua frente, no fundo guardando uma tira da mais profunda frustração? Asher, ao perceber o efeito do discurso, tratou de ir direto ao ponto: de um dos bolsos, tirou um frasco com uma substância turva e viscosa em seu interior.
–A opção ainda é sua, não precisa me olhar desse jeito... Mas eu vou lhe dizer o que vai acontecer caso aceite: o que tenho aqui é uma mistura de Sonhadora, Morfina, sumo de uma aranha gigante de Etherea e uma dose mínima de Salvaria Branca, o entorpecente mais poderoso conhecido pela ciência. Você será induzido a um coma do qual jamais despertará ao ingerir esta coisa, mas seu corpo será totalmente preservado dos efeitos do veneno que o debilitou. Nesta condição você será conectado a uma máquina que o preservará pela eternidade, e através de algo chamado conexo mental esta máquina gerará uma imagem etérea de si mesmo, como a minha que agora se põe a falar. Você não estará vivo nem morto, mas flutuando numa dimensão de vapor utilizada para gerar o conexo, e poderá transitar livremente por ela, na velocidade em que desejar, para qualquer ponto do mundo... Até aqui, tudo bem?
–Imagem etérea de mim mesmo? Mas eu já devo estar morto e viajando... Ih, a enfermeira voltou! Oi enfermeira!
–Preste atenção, Spencer! – Asher teve de vociferar contra a loucura do enfermo mais uma vez, agarrando-se com força na cabeceira até se acalmar – Esta questão da imagem você só entenderá depois que se tornar um translocant-
–Fala como se eu já tivesse aceito. Eu disse que minha resposta não muda, senhor.
–O.K... Acho que terei de mudar o tom – o moreno então suspirou e balançou a cabeça antes de se levantar – Não direi mais nada fora isso. Você seria invisível para qualquer um que não fosse a mim, e faria o que desejasse... Poderia ter todas as mulheres do mundo e caçar todos os seus inimigos sem punição, desde que soubesse ser discreto.
–Eu só quero a enfermeira.
–Então você irá apodrecer aqui! – sem agüentar mais, Asher quase rachou a parede com a força de seu soco, alarmando inclusive os fantasmas com seu modo de rugir. Infelizmente, dialética nunca foi o seu forte... Quanto a Harold, este apenas fechava os olhos – Seu desgraçado, você será invencível para todo o sempre! Você terá sua saúde de volta, e ninguém será capaz de tirá-la, nunca mais!
Num esforço sobrenatural, incapaz de sequer abrir os olhos, o enfermo soprou as palavras que encerrariam o assunto:
–Foda-se, senhor. Deixe-me apodrecer em paz...
–É, que se foda! Não entendo como um veado covarde como você conseguiu ser escalado para o front de Insecura. Deve ser por isso que a senhorita Lacer te chifrou com um relojoeiro todos esses anos de mar. Talvez até eu passe ela na cara depois que você se for.
Sem dizer mais nada, Asher guardou o frasco no bolso e se levantou, pronto para sair dali. Como alguém tão insubordinado poderia ser importante a esse ponto? Que os espíritos o violentassem; dele não seria nem o mais raso dos soldados, e que Styx e sua corja engolissem isso. Porém, ele jamais esperaria que uma simples ofensa desencadeasse um gatilho tão poderoso no moribundo: lá atrás, seu desdém desapareceu pela segunda vez no dia, dando lugar a um sentimento muito mais poderoso.
Ódio. Pelos membros incapazes de se mover, pelas lágrimas que queimavam os olhos toda vez que o nome da vadia era mencionado. Ódio pelo papel de marionete durante dez anos de serviço militar, apenas para ser silenciado diante da primeira oportunidade, ódio por ter uma vida inteira apagada num piscar de olhos do sistema. Vingança, mesmo que tivesse de se entregar aos braços sujos da Federação para desmembrá-la em seguida. Foi com esta carga raivosa, olhos arregalados e voz ardendo na garganta que Harold Spencer chamou o Chefe da 1ª Divisão Translocante de volta:
–Espere. Você venceu... Eu aceito. Transforme-me num translocante, para eu poder enfiar um soco nessa sua cara escrota.
E apesar de uma ofensa que o faria arrancar os dentes do soldado em condições normais, Asher Uthman sorriu de maneira sinistra. Sem virar para trás, o comandante proferiu a sentença:
–Seja quais forem os seus motivos, fez uma escolha sábia em se juntar a causa da Federação. Infelizmente, você desperdiçou sua única chance de conversar comigo... A partir de agora, não vou querer ouvir sua voz ao menos que seja ordenado – e, ao se aproximar mais uma vez e tirar o frasco do bolso, sua fala recebeu um tom de ameaça – e quando você despertar para a nova vida, saiba que farei questão de moldá-lo pessoalmente... Então veremos quem vai enfiar o que no outro.
–Agora abra a boca e morra para o mundo, Harold Spencer.
O veneno desceu, amargo e gosmento como catarro de mendigo. Harold Spencer, ex-fuzileiro naval e herói sem condecorações apagou para sempre, sem um engulho sequer. Assim, um novo tentáculo invencível do governo estava para nascer... Mas quanto tempo levaria até ganhar vida própria? Pois, antes de perder a consciência, o homem fez uma promessa para si.
Ele se livraria da Federação para sempre, e lhe daria um golpe do qual jamais seria capaz de se recuperar.
***
Lá fora o sol estava a pino, e os pássaros cantavam a alegria da floresta enquanto a carruagem seguia seu caminho para longe do asilo. Um corpo era velado entre os assentos onde os três figurões se sentavam.
–Fez um belo trabalho, meu caro Asher. Tenho certeza de que um homem capaz de dilacerar uma tribo inteira sozinho será muito útil para os propósitos da Federação dos Seis.
–Ele vai dar trabalho, secretário sênior. Deve levar alguns meses até a estabilização do conexo.
–Vai valer a pena... E, além do mais, você não faz idéia do que tivemos de presenciar enquanto vocês dois conversavam.
Encolhido num canto, Faber ainda tremia com uma expressão de horror no rosto.
FIM
Cinematográfico. Simplesmente cinematográfico. Ler o texto é como ver um filme, literalmente. Não houve sequer uma cena em que eu não pude imaginar perfeitamente o que acontecia, até as vozes. Maravilhoso.
ResponderExcluirO universo ate aqui parece muito rico e interessante, no aguardo pra ver mais desse mundo! E curti muito a parada dos espíritos e tal, porque geralmente não vemos essas coisas em literatura "esfumaçada", bom pelo menos eu nunca vi hehe
E gostei muito desse personagem hehe, espero ver mais dele no futuro!
No aguardo por mais!!
Estou atrasado, mas mesmo assim!
ResponderExcluirApesar das palavras de baixo calão (que, por frescura pessoal, não gosto de usar), adorei. Incrível, soberbo, speechless.
Anotarei sua CRitica Sairaf, espero que se delicie com o conteudo de nosso blog, é um livro aberto para pessoas como vocês. Obrigado por estar conosco ^______^
Excluir