Bem, esta é minha estréia como contista no Steamage. O que trago é o início do que deve ser uma série de contos envolvendo o personagem em questão, e a partir daí pretendo extrair textos sobre o cenário (conforme explicitado na apresentação), pelo menos um para cada história.
Boa leitura!
Harold Spencer, o homem que nunca chegou ao front
Parte I
Aiden era uma aldeia na região de Alesja – ou Aliesch nos tempos em que ainda era um país, antes de se juntar a outros cinco para formar a União Federativa. Longe dos maiores centros urbanos, numa região de bosques pouco tocados pelo homem, podia ser considerado um lugar de paz. Um canal escavado no rio que dava o nome ao vilarejo era o suficiente para abastecer o mesmo, de arquitetura simples e complementada por pontes e rodas d’água. Estas últimas, mais a fumaça vertendo das casas em estilo colonial, bastavam como tecnologia. Não era de se espantar que um lugar assim guardasse um asilo; a Casa de Repouso de Aiden, assentada no coração da floresta, constituía um dos maiores destaques de Alesja, sendo inclusive pioneira no tratamento de diversos males do corpo e da mente. Ao contrário da reputação não muito boa desse tipo de lugar, os ex-pacientes afirmavam o asilo como uma nascente de absoluta tranqüilidade, sem receber nenhum tipo de maltrato como choques térmicos, camisas de força e overdoses de morte em vida. Os motivos de ser tão eficiente sem as teorias da medicina atual, embora parecessem óbvios, continuavam um mistério incapaz de ser reproduzido fora dali. Sua sobrevivência vinha de doações, tantas que parte do investimento era aplicado na própria aldeia.
Pois bem, naquela manhã uma diligência vinda da capital rumava para a Casa de Repouso. O fluxo de pacientes e familiares dos mesmos fazia desta visão algo comum, fato sabiamente aproveitado pelos seus passageiros. Não que fossem mal intencionados, mas chamar atenção com um veículo oficial tornava-se desnecessário para a ocasião. Lentamente, o conjunto de telhados triangulares e o cheiro de pão recém saído do forno dava lugar ao frescor do orvalho, acompanhado pelo sacolejar de uma estrada de pedras. Estranha paz os invadia, como se o ar fornecesse a terapia contra qualquer tipo de mal; preocupações, estas ficavam junto dos prédios empesteados pelo calor das caldeiras, impossíveis de se conceber no seio da terra. Acabaram se esquecendo do que estavam para fazer, mas só por um momento, pois o parar da carruagem servira como despertador da realidade. Tão logo o cocheiro abriu a porta, três homens pediram licença antes de descer. Um deles, na casa dos quarenta, observava a gigantesca figura do asilo com certa admiração. Era rechonchudo, mais forte do que gordo, a primeira vista lembrando alguém que há muito se afastou dos exercícios, provavelmente um militar. O mancar da perna direita, pouco disfarçado por uma bengala de madeira envernizada e com punho de prata, tornava as coisas mais claras. Aquele era o ministro da defesa de Alesja, coisa que a voz de um dos companheiros fez questão de lembrar:
–Senhor ministro? – fora arrancado de seu devaneio por Wesley Styx, o de aparência mais velha e importante dentre os três, o que lhe provocou um suspiro de chateação. O outro, no entanto, sorria com os dentes amarelados pelo tabaco, daquela maneira ambígua que todo político parece treinado para fazer desde o nascimento – desculpe interromper... Esta é mesmo uma bela vista, não é?
–Sim... – e ele retribuiu com outro sorriso, surpreendentemente verdadeiro. Os olhos se perdiam numa espécie de nostalgia – lembra que eu contei ter quase enlouquecido com a dor depois do acidente? Então, fui tratado nesta casa... Posso dizer que minha perna praticamente cresceu de novo.
–Isso lhe faz acreditar e milagres, de certo – o tom de ironia fechou a cara do ex-paciente. O terceiro sujeito, com a pele morena das estepes de Elea, permaneceu calado de forma soturna. Alto, musculoso, ficava entre o engraçado e o aterrador naquela casaca militar apertada e repleta de adornos – não me entenda mal, Faber. Eu também passaria a acreditar.
–Não faça menções a Lei Feérica aqui, secretário sênior. Este lugar salvou minha vida.
Wesley ia falar alguma coisa, mas um gesto de “vamos” do moreno acalmou os ânimos por enquanto. Uma mulher já os aguardava de prontidão nos portões, procurando não se abalar diante dos figurões. Outro detalhe curioso era a ausência de grades que separassem o asilo da floresta, bem como janelões rentes ao chão e sem nenhum tipo de barreira. Que espécie de lugar trataria loucos assim? E a recepcionista, jovem, loira e de feições esbeltas, também se vestia de maneira estranha: uma batina branca e de contornos dourados, longe do uniforme tradicional, ainda com um capuz pendendo para trás! De repente, o aviso de não falar na lei que proibia qualquer culto religioso além da Uma Federativa passou a fazer sentido.
Antes de entrarem, o mais forte dentre os três pareceu se tremeu num calafrio. Pareceu ter visto algo que não lhe agradava nem um pouco.
Como Faber havia agendado a visita duas semanas atrás, o contato com a mocinha foi breve:
–O senhor Spencer deve estar descansando nesse momento. Incomodaria se esperassem até eu acordá-lo e trocar suas roupas? Temos um chá de limão genuíno de Lucréa, se for do agrado dos-
–Não podemos esperar nenhum segundo, madame – o fardado se manifestou pela primeira vez, impondo temor com o tom grave de sua fala, análoga ao rugido de um leão. Na verdade, era ele quem se sentia perturbado com alguma coisa – temos de vê-lo imediatamente.
–Faça o que quiser Asher, mas eu não dispensarei um bom chá lucreano por nada no mundo – sem alterar a voz, Wesley Styx impôs sua patente de forma ainda mais constrangedora. As medalhas na casaca bastavam para encerrar o assunto – bem, onde podemos nos sentar?
Depois de guiá-los até o refeitório, a enfermeira intimidada pelas figuras de poder se retirou. Servidos por outra moça, desfrutaram daquele chá com biscoitos e mel da maneira típica da Federação. Contudo, por mais que tivesse se rendido a uma xícara de limão e conversas levianas, Asher se mostrava apreensivo:
–Secretário sênior, é bom que entenda dos riscos que corremos ao perdermos tempo aqui. Precisamos do paciente vivo, e o senhor sabe disso.
–Ora, deixe disso... Não é como se ele fosse morrer enquanto conversamos. Francamente Asher, mesmo alguém como eu consegue discernir os momentos onde se deve relaxar – sem largar os dedos da alcinha de porcelana, Styx quase deixou a xícara cair com a próxima atitude do fardado: ignorando completamente os conceitos de hierarquia, este se debruçou na mesa até praticamente engoli-lo com o seu tamanho.
–O senhor quer falar de discernimento comigo, secretário? Que tal lembrar que eu caminho entre o mundo dos vivos e o dos mortos? – profundamente ofendido, o outro iria replicar, não fosse o olhar de Asher por cima de seus ombros. Por algum motivo, aquilo lhe assustou... Faber apenas ouvia tudo, atônito – Bem atrás do senhor, um espírito nos vigia da porta, e muitos outros vagam pelos corredores. Este pode parecer um lugar de paz, mas um olho treinado enxerga mais do que o vento nos galhos.
–Sim... – tentando em vão disfarçar o medo que lhe afligia, Wesley deixou a bebida sobre o prato. Assim, o tremor dos dedos se tornava menos evidente – mas exatamente em que isso nos prejudicaria? Sou cético, como mandam os bons costumes da sociedade, mas tenho mente aberta o suficiente para compreender que os mortos não possuirão motivos para interferir no que é material caso nós não os demos.
–Bem, digamos que o mesmo não vale para quem está perto de falecer – desta vez era o moreno quem se portava como autoridade máxima no assunto; mais do que compreender as questões metafísicas, ele as vivenciava – os imateriais dependem de energia, a qual se encontra em abundância nos planos onde vagam. Mas, a essência de uma alma prestes a largar a carne libera uma carga absurda, que funciona como um vórtice para esses seres.
–Agora eu que não entendo! – o ministro, de longe o mais pasmo diante de tais devaneios, resolveu questionar – eu imaginava que vocês translocantes não estivessem mortos!
–Não... Como disse antes, estamos entre os dois mundos. Para criar o que chamamos de conexo mental é necessário que a essência esteja intacta, e neste lugar quem está perto da morte é literalmente devorado em espírito. Francamente, não me importo em como as enfermeiras (ou devo chamá-las de sacerdotisas?) lidam com isso, mas precisamos tirar Harold Spencer daqui o mais rápido possível.
“De acordo”, os outros responderam praticamente juntos.